Fãs nº1 não batem bem da cabeça

No filme Misery (Louca obsessão), baseado numa novela de Stephen King, um escritor de best-seller é aprisionado por uma enfermeira que se denomina " a fã nº 1". O escritor, autor de uma série que retrata a vida de Misery, não suporta mais sua personagem de maior sucesso e decide dar cabo dela. Escreve um livro em que Misery morre. A enfermeira, revoltada, obriga o autor a escrever um livro em que a personagem ressuscite.
Está na cara que Paul Sheldon, personagem-escritor, é Stephen King, autor de best-sellers, atormentado por assustadores fãs nº 1; existem, e são tantos... E não é um privilégio só de escritores: qualquer um que tenha o retrato publicado em jornal, ou tenha habilidades que um  cidadão comum não tem, ganha de presentes fãs nº 1.
Alguém que se denomina fã nº 1 não deve medir bem da cabeça. é uma tremenda pretensão e falta de modéstia se achar o nº 1. Imprevisível, obcecado, geralmente é um leitor solitário que adquire uma intimidade ilusória com o autor e personagem. é ingênuo em acreditar nas tramoias célebres que se usam para enganar, envolver e confundir o leitor. Só a mãe, ou a vó, ou a mulher, ou a filha, ou a amante têm o direito de ocupar o nº 1. Resta o nº 2 pra lá...
Literatura é mentira, é imitação; uma representação do real. Mas, para um nº 1, os personagens povoam sua retina e rotina. Identifica-se com alguém que nunca existiu. Já escrevi sobre isso: paguei meu preço quando matei Mário, personagem de Blecaute. Muitos leitores me ligaram no meio da noite provavelmente no momento em que leram a morte, para me xingar; Mário, ambíguo, destruidor e frágil, um amigo perdido, cujo estatuto desperta empatia, tinha de morrer, sabe-se lá por quê, e ponto final.
Houve um travesti que me ligava de Santos, às quatro da manhã. Estava lendo Ua:brari. Me ligava para comentar a trama. Se eu desligasse, ele tornava a ligar e me acusava de ter preconceito contra homossexuais. Se aproximava do final do livro. Estava apaixonado por Zaldo, personagem. Mas Zaldo iria morrer; não deu outra. Durante um mês, tirei o telefone do gancho. Saía de casa tenso, imaginando que o leitor estaria na esquina, me esperando para vingar a morte de Zaldo. Nunca mais ligou. que Deus o tenha.
Essas mortes são minha responsabilidade, aliás, do enredo que, aliás, sou eu que escrevo? Não. São de alguém que vive em mim, e que só conheço quando leio o que escrevo. A psicanálise dá um nome para este alguém: inconsciente. Guimarães Rosa deu outro nome: Diabo.
Tive uma terapeuta que provou, por "á" mais "bê", o Édipo que existe no que escrevo. Blecaute é uma bandeira. Nenhum crítico jamais percebeu. Eu, menos ainda. O tripé Mário, morre no final. E os leitores tentaram me faze sentir responsável, por um homicídio que não cometi. Foi o DOI-CODI que matou o pai, Mário, em 1971; seu corpo, assim como o de Mário, nunca foi encontrado. Hum...

Por: Marcelo Rubens Paiva - Crônicas para ler na ESCOLA.

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